RAP

Fazia Sentido – Don L e o mercado do RAP no Brasil

Os versos que escancaram a grande indústria do hip-hop nacional

Quando o Don L lançou o seu supra-elogiado Roteiro Para Ainouz Volume 3, em 2017, muita gente parou no raso. É um álbum denso, onde o rapper vai na contramão do bragadócio barato e fala sobre sua própria caminhada de Nordeste a São Paulo. Nessa onda, as primeiras duas músicas do álbum me chamaram a atenção e eu explico o porquê.

Em “Eu Não Te Amo”, Don L prega uma contra-reverência à cena. Num ataque direto, ele, literalmente, diz que não ama nada do que ele via no cenário do rap naquele momento, indagando o porquê dos MCs que postavam snaps com maconha tinham tanta relevância para o público de forma geral. Para mim, foi quase como um eco do que Diomedes e Baco fizeram em Sulicídio. Mas tinha muito mais aí. Se liga nesses versos:

 

E eu deixei o nordeste

Há dois ano com uma sede de secar a Sabesp

Sem chapéu de palha, nada clichê e velho

Eu vim pra tomar o jogo

Não pra ser um boneco exótico

E forjar um sotaque meio robótico

Com um papo Buda zen

Pra sugar bem

Pagar cinquenta ao bamba rei do samba

Se é MPBoy a grana vem

Igual passarinhos voando

Colando no Leblon vez em quando

Pra chupar a Lavigne

Mais do que o Athayde faz plano

Na sauna hype do Caetano

Mas eu não te amo

 

Sem papo buda-zen, sem sauna hype do Caetano. O Don fala aqui de MCs que ganham notoriedade se “vendendo” ao mainstream. Ao citar Paula Lavigne e Caetano Veloso, Don L fala da suavização do discurso do rap para vender para as massas. Mais especificamente, Emicida e Criolo, monstros sagrados do hip-hop Brasil.

Eu acreditei nisso, na primeira vez que ouvi a faixa. Fiquei de cara com a coragem de Don L ao atacar esses caras. O público chama de diss (rap feito para atacar outro rapper). Felizmente, Don L previu que eu era tão bobo quanto a maioria do público e explicou tudo na próxima faixa.

Em Fazia Sentido, ele continua cantando sobre sua caminhada e seus percalços. Ao fazer uma análise do ponto em que se encontrava o rap, muito antes dele ser o fenômeno que é hoje, Don L canta sobre o quanto os rocks de condomínio (a onda de rock dos anos 2000 capitaneada pelo producer Rick Bonadio) e outros ritmos eram aceitos, mas o rap não.

Então, ele manda essa pra gente:

Agora imagina eu ter que explicar a minha intro

Olha como tá o nível

Eu num tô tirando o Criolo e Emicida

Eu tô falando do jogo

Cê tem certeza que fala minha língua?

Ler o título não é ler o livro

Ler o livro não é entender o livro

Depois que cê entender o livro

Cê pode colar pra falar que cê num curtiu o título

Certo?

 

Sim, Don L não fez diss nenhuma para o Criolo ou para o Emicida, ele tava falando do jogo. Mas que jogo é esse? Ele explica lá no começo dessa faixa também:

 

Eu tô nesse jogo por um bom tempo

E eu nem gravei um disco

Eu lembro do Caetano me entregar um prêmio

De melhor do nordeste

O que diz sobre isso

Porque não tinha uma categoria pro sul

Então era tipo

Esmola pra segunda divisão, tru

Mas eu nunca comi partido

 

Desde o rolê com o Costa a Costa, Don L e vários de seus companheiros estavam no jogo. O prêmio que ele cita é o Prêmio Hutúz 2009, em que seu grupo foi encaixado na categoria norte-nordeste. Curiosamente, não havia uma categoria sul-sudeste, como se o eixo fosse a norma e o resto do Brasil fosse um cenário a parte, gente menor, que merecia um reconhecimento – mas um reconhecimento dentro de uma caixinha específica.

O que isso fala do mercado?

Bom, antes do grito de Sulicídio, as demais regiões do Brasil eram primos pentelhos do grande e destacado rap do sudeste. Grupos e cantores que já estavam na cena há algum tempo não tinham destaque, não por não serem bons o suficiente, mas por falta de espaço nos holofotes da grande mídia.

O que Don L também afirma é que havia (e ainda há) esse preconceito incrustado no coração dos fãs de rap BR, não só na mídia ou nos produtores. Numa visão bem íntima, Don nos conta, através de sua trajetória, sobre como o ritmo de libertação no Brasil estava sendo massacrado pela roda da engrenagem da indústria musical. Os fãs de rap também não escapam: afinal, tudo isso podia ser encontrado na internet, mas a galera preferiu continuar se apoiando na muleta da mediocridade que a cena fornecia naquele momento, pelo menos no mainstream.

Felizmente, o cenário hoje é diferente. Com o sucesso de RPA3, Don L fez  turnê de divulgação e gravou, recentemente, uma cypher com outros nomes do rap nacional pela Pineapple. Aqui, vale deixar o recado do próprio Don para os novos artistas, que pensem em trilhar o mesmo caminho que ele: Se Não For Demais, é pouco.

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Natan Andrade Medeiros

Escritor de ficção científica e histórias de boteco, palpita nas horas vagas sobre música em todas as suas formas de vida (seja ela animal, vegetal ou mineral). Publicitário pela UnB e especialista em Mídias Sociais. Escreve contos e crônicas na publicação Simbiose, no Medium, desde 2016. Natan Andrade também está por trás dos podcasts da ESCUTA.

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