BRASILEIRADIÁSPORA

Josi Lopes: um tambor gritando na noite quente dos trópicos

Um dedo de prosa sobre a poesia, o tambor e a canção dessa grande cantora mineira

Ainda está quente no verão de incertezas do Brasil de 2019. O “tambor está velho de gritar”, nos disse o grande poeta moçambicano José João Craveirinha, em sua sabedoria do fundamento das coisas que são.

Um alento vibra nos toques do tambor de Josi Lopes, um grito afinado pelos tons da ancestralidade, um batuque futuro que ainda não chegou e nos conta do desejo de ser tambor, corpo e alma, só tambor.

Em outra passagem, clama Craveirinha ao Deus dos homens para ser tambor, “nem flor nascida no mato do desespero/Nem rio correndo para o mar do desespero/Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero/nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero/Nem nada! /Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra”.

É desse tambor curtido no sol da minha terra que as mãos de Josi Lopes traduzem em batuque a verdade, a fome, a cor, a dor, a dúvida, o cinza, a esperança, o axé, a resistência.

Josi Lopes – Do tambor (Josi Lopes)

Como canta no belo tom afinado de sua voz, se “misturar a fome com a sua dor e sua vontade/Não importa como/Quando tem amor/Reluz verdade”.

Saída de um belo horizonte em que não se encontrava, a cantora mineira nos confirma em seus versos que existe amor ainda e que a vontade de cantar e a esperança ardem vorazes. O peito reluz verdade tocado pelas belezas e pelos versos que ocupam e resistem pela força da pele e pelo apelo do amor à música.

Josi Lopes – Cantadeira (Josi Lopes)

Josi Lopes é cantadeira. Está ciente de suas forças e já jogou o seu axé pro universo com suas composições, instrumentações e interpretações. Como ela mesmo nos diz, o faz “porque o medo já se transformou em cruzadas de calma e incontroláveis rimas e versos”.

Aquelas incontroláveis rimas que já conhecemos desde antes de ser apresentada a sua Essência (EP disponível em todas as plataformas digitais). Foi no Espelho (Josi Lopes) que conheci a cantora de cuja boca sai um trovão vindo das entranhas soltando as verdades pelo ar.

Josi Lopes – Espelho (Josi Lopes)

Foi aí, que estética e afrofuturisticamente, vi a potência que deixou sua cor mandar, lançou a liberdade pra falar e, magneticamente, entoou a força de Obá (Marina Decourt), em versos tão incontroláveis quanto são os seus.

O corpo que dança ao vivo, na batida do tambor, é aquele que, nos conta Elisa Lucinda, sente “o calor no passo do pé, a pisada de quem sabe de sua terra, sua fé. Batuque ancestral e novo pulsa forte na noite imensa do terreiro”.

Josi Lopes – Obá (Marina Decourt)

É noite, é África, são os tambores de Elisa Lucinda e de toda mulher negra que percorre os nossos corpos negros ao som de Josi Lopes, nessa grande diáspora que é o mundo do lado de cá do Atlântico.

Cantora e atriz, [já atuou em musicais como “O Negro, a Flor e o Rosário” e na remontagem de Zumbi, de Augusto Boal], Josi Lopes lançou o show “A essência do tambor” e com muita poesia concretiza os desejos anunciados na poétnica de Lucinda e Craveirinha. Serena, declarou em entrevista recente que:

O recado que quero passar é do pertencimento, do empoderamento. Me sinto vitoriosa de poder fazer o que amo e com qualidade. Muitas vezes artistas negras da minha geração, da minha quebrada, não tem essa oportunidade, tudo é muito caro, as coisas são mais difíceis. Temos que trabalhar em dobro, esperar mais tempo pra que tudo aconteça.

A noite de veraneio é quente ao sul do Equador, úmida da chuva que lava, mas não leva a lama que entope as artérias do nosso país. É quase carnaval e enquanto isso, Josi Lopes segue sua missão, acende um calor no coração incrédulo de boas novidades e consegue passar o seu recado de pertencimento e empoderamento, mesmo diante das dificuldades do caminho.

Ela é “só tambor ecoando como canção da força e da vida/Só tambor noite e dia/Dia e noite/Só tambor até à consumação da grande festa do batuque!”. É o futuro dourado em franco diálogo com as raízes profundas da ancestralidade negra que nos alimenta de força e coragem.

Se o seu medo ainda não se transformou em cruzadas de calma, abra espaço para encontrar Josi Lopes e o seu tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Poemas citados:

José Craveirinha – “Quero ser tambor”.

Elisa Lucinda – “São tambores”.

Mais informações sobre Josi Lopes:
http://josilopes.com/

https://www.youtube.com/channel/UCJX83_CXqu3qAoWZcH67PDg

 

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Fredson Carneiro

Baiano de Ibititá, sou apaixonado por música desde sempre. Sendo um diletante nas artes, sou mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolvo pesquisa sobre as transformações promovidas no direito e na política pelas lutas das pessoas transvestigeneres. Sobre a vida e a música, concordo com Milton Nascimento: "Há canções e há momentos/Em que a voz vem da raiz/Eu não sei se é quando triste/Ou se quando sou feliz/Eu só sei que há momento/Que se casa com canção/De fazer tal casamento/Vive a minha profissão".

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