ELETRÔNICA

O movimento de rua – a resistência da cena eletrônica na capital

A música eletrônica como alternativa ao clássico cenário roqueiro de Brasília

Se tu é daqueles que cola no rolê e já corre pro front, senta aí porque essa matéria é pra você! Mas, antes da gente começar a falar de BSB, é necessário conhecermos um pouco dos primórdios do bagulho, quem de fato colaborou para a música eletrônica se consolidar no país muito antes do Alok pensar em ter um jatinho.

Tudo começou com Osvaldo Pereira, o primeiro DJ do Brasil. Naquela época, Osvaldo era responsável por colocar os discos para tocar nas rádios, uma tarefa mecânica que qualquer um poderia fazer. Com o surgimento de novos gêneros musicais, as orquestras (que faziam o papel de animar as festas) foram diminuindo e fez-se necessária a tarefa do “discotecário”, que ficava escondido em cabines. Então, Seu Osvaldo foi o primeiro a segurar as pontas num baile chique do RJ, sem uma orquestra, e com um sistema de som que ele mesmo havia construído, sem essa de montar set com as top 10 do Beatport e “só apertar play”.

Vinte anos mais tarde, os DJs das rádios começaram a se firmar fora delas, tocando para grandes bailes. A rádio foi um veículo que colaborou muito com todo esse aprimoramento da “profissão DJ”, não pela propagação de conteúdo em si, mas pela estrutura que ela oferecia aos profissionais que se aventuraram no ramo. Os equipamentos sempre foram caros, mas ali o profissional tinha acesso a várias tecnologias para o aperfeiçoamento. Vale ressaltar que, nessa época, não existiam técnicas como a de mixagem. O som não tinha continuidade, mas o público também não se preocupava com isso, o foco era a seleção de músicas apresentadas pelo profissional presente.

O primeiro a desenvolver a mixagem no Brasil foi o DJ Ricardo Lamounier, que no final da década de 1970, com a popularização da discoteca e o boom da Disco Music, começou a utilizar duas turntables e um mixer para misturar músicas, e dar continuidade entre elas. A partir desse novo momento, no início dos anos 1980, surge a função artística do DJ, o que ajuda a consolidar a música eletrônica no País.

Podemos perceber que a música eletrônica vem sofrendo mutações ao longo do tempo para se ramificar em várias vertentes. Estas buscaram referências em outros gêneros musicais ou até em outras linhas da própria eletrônica para serem lapidadas.

Vale ressaltar também a importância de um grande personagem, talvez um divisor de águas para a disseminação e consequente popularização da música eletrônica no Brasil, entre outros gêneros. Carlos Machado, o DJ Nazz, foi o maior vendedor de discos no Brasil entre 1975 e 1994. Durante quase 20 anos, fez mais de 200 viagens para o exterior, principalmente para Nova York, em busca de lançamentos dos artistas de fora, seja da música eletrônica, ou do funk, rock etc., que só chegavam aqui porque ele trazia.

Hoje o acesso à música é muito fácil. O artista lança e todo mundo consegue ouvir através do Spotify, Youtube e outras plataformas, sem a necessidade de algo físico. Mas naquela época, muitas músicas eram “exclusivas”, pois poucos DJs tinham o disco que continham a track, e os que tinham, deveriam agradecer a ele. Carlos teve um papel importante, mesmo que indiretamente, como disseminador da cultura eletrônica no país. Se não fosse por ele, algumas coisas teriam chegado por aqui bem mais tarde, como por exemplo, o “Volt Mix 808”, um beat muito utilizado no funk carioca.

Em Brasília

O DJ Ronaldo Holanda, profissional no ramo há mais de 20 anos, e professor do curso “ProDeejay”, conta algumas características do início da cena eletrônica da capital:

Havia muitos clubs na cidade, mas em algum momento isso começou a saturar. Houve a necessidade de se abrir espaço para novos sons justamente para sair dessa mesmice. Brasília chegou a receber alguns eventos grandes, como a Love Parade por exemplo. Porém, naquela época, os eventos aconteciam de forma mais “espaçada”, até porque a cidade não comportava tudo isso. Hoje a capital federal já consegue sediar vários eventos simultaneamente, pois existe um público. Mas como disse Ronaldo, “Se você tem música eletrônica só nos clubs, fica muito elitizado”, defende.

E para fazer voz contra a elitização da música eletrônica, entre outras pautas, podemos ver vários coletivos culturais presentes no movimento de diferentes formas, mas querendo ou não, se ajudando mesmo que indiretamente a levantar o cenário eletrônico alternativo a outro patamar.

Nesta reportagem, conversamos com três desses coletivos.

SUJXXx

Integrado por Fernanda Duarte, Ana Ramos, Stenio Freitas e César Bosi, o grupo percebeu uma certa carência tanto na música eletrônica, quanto no rock. Existiam eventos na cidade para ambos os gostos, mas eles estavam restritos a certos grupos, logo, não era todo mundo que podia ir, sem contar os talentos sem visibilidade.

Essa “elitização da cultura” que ocorre em todas as áreas e gêneros cria uma bolha dentro do que se tem de mais comercial num estilo, que praticamente se fecha para outros movimentos. Não há diálogo com outras vertentes, não sobra muita popularidade. É como Stenio disse na entrevista, basicamente, se você não fizer aquilo que gostaria de “consumir”, fica sujeito ao mainstream.

Como a preferência do grupo está longe disso, eles resolveram fazer parte da diferença. Com exceção do César, os demais integrantes são DJs. Eles tiveram a ideia de passar a expor o som que produziam e pesquisavam, além do que eles também gostariam de ouvir. O coletivo queria ter um lugar para tocar o som que gostam sem se preocupar em apenas agradar ao público, como acontece na bolha da elite, onde o público quer sempre ouvir as mesmas músicas, aquelas populares que estão em alta nas rádios ou no Spotify, nem sempre abertos a conhecer outras coisas.

“A pista da música eletrônica (no meio underground) é muito mais receptiva. Você pode tocar uma música lá da Bélgica com o som muito quebrado que o público vai estar ali, predisposto a ouvir aquilo, porque o público sabe que a festa se trata disso, falar da liberdade musical, dela se tornar arte e não ser só um comércio ”, adiciona Fernanda.

A consequência disso é o que a SUJO representa hoje, como um polo aglomerado de pessoas que querem participar disso, consumindo e fazendo a mesma coisa, uma espécie de força dentro da resistência orgânica que os coletivos culturais exercem na cidade.

Mas estar à margem não significa apenas focar em uma sonoridade diferente. O grupo também levanta bandeiras sociais e políticas. É intolerante a comportamentos machistas, racistas, homofóbicos, transfóbicos, enfim, contra toda e qualquer forma de discriminação.

Eles não buscam fama nem riqueza. Mesmo assim, o coletivo acabou crescendo, talvez pela falta de visibilidade nessa cena alternativa e por existir em Brasília um público apreciador desse movimento. O grupo procura atingir novos públicos, mas nunca deixam de ressaltar as suas pautas.

 

Já houve incidentes desagradáveis, mas a produção nunca se cala diante desses temas. “Teve um episódio de um segurança transfóbico na nossa primeira festa, mas a gente retaliou imediatamente. Isso é uma parada que a gente não aceita, não pode acontecer”, contam.

Instagram e Facebook do coletivo.

Só na Maldade

Esse coletivo também começou com quatro pessoas, os irmãos Fernanda e Vitor Assunção, Guilherme Augusto (ex-membro) e Lucas Mota, com a intenção de fomentar o cenário da música eletrônica além do âmbito festivo, com um enfoque mais plural, já que o grupo também tinha uma visão para as artes, fotografias etc. Pouco tempo depois, o grupo admitiu a entrada de mais uma integrante, Paula Garcia, que já trabalhava com eles.

Havia um interesse mútuo no movimento, mas também muitas insatisfações. Perceberam que poderiam agregar valor à cena eletrônica da cidade. As festas não deveriam somente ser essa experiência rasa de “beber e curtir um som”, e sim, servir de ambiente de protesto para a defesa de causas, para realizar intervenções artísticas, promover e compartilhar conhecimento, e, por consequência, se explorarem como artistas também.

O primeiro evento do grupo foi batizado como “Só na Maldade Sessions #1” e tomou lugar no Setor Comercial Sul. Eles foram fiéis ao objetivo de fazer algo mais nas festas, então além da música proporcionada pelos DJs do coletivo, promoveram uma exposição de fotos e venda de vinis. A festa foi gratuita e se sustentou pelos lucros do bar. Um evento diferente do que a cidade estava acostumada. A festa foi um sucesso, então eles resolveram levar a ideia adiante.

Como os coletivos da cidade basicamente trabalham em prol da mesma causa, é muito comum vê-los se ajudando em diversos aspectos. Eles conheceram outro coletivo, o extinto “Ímã”, integrado na época por Rachel Denti, Elvis Sales Lins, Thiago Freire e o Stenio, que já conhecemos pela SUJO. A ideia foi a de usar um espaço coberto, estruturado por concreto, que fica entre o Ulysses Guimarães e o Clube do Choro.

O DJ STICKONE (Stenio Freitas) em ação durante a Crying Club #7, que aconteceu em maio. — Elvis Lins

Daí surgiu uma outra festa do grupo, essa em conjunto com a Ímã, chamada “Crying Club”. O evento explorou mais a sonoridade dos DJs dos coletivos, além de ter ocorrido num lugar inusitado. O grupo se preocupa muito com o que eles denominam “ocupação e ressignificação de espaço”. A intenção de fazer a festa ali, por exemplo, foi dar outra cara para um lugar inutilizado. A “CC” também foi gratuita e se sustentou com os ganhos do bar novamente.

Então, o SnM convidou os integrantes da Ímã para unir forças. Hoje o coletivo Só na Maldade conta com nove integrantes. São artistas, DJs, uma designer gráfica e fotógrafo, mas todos desempenham diversas funções.

Assim como a SUJO, o SnM também abraça as causas contra todas as formas de preconceito e discriminação, exprimem uma voz ativa em forma de resistência do movimento da música eletrônica underground, além da já comentada ocupação e ressignificação de espaço. “É difícil fazer festa nessa cidade, por conta de alvará e lei do silêncio. Querendo ou não, acaba sendo um ato político também fazer uma festa de ocupação”, diz Fernanda. O trabalho contra a elitização também é uma meta.

“Hoje em dia, existe um estigma até no profissional da música eletrônica. O DJ tem o estereótipo de homem, branco, hétero e cis, e não deveria ser assim. O techno não começou assim, foi inicialmente um movimento negro inclusive, que buscava sempre pregar o respeito. Consequentemente virou ambiente para a comunidade LGBT também, justamente porque ali era uma esfera pacífica onde todo mundo podia estar incluso, então porque hoje tem de ser diferente? ”, explica Vitor.

Alguns “cartazes” apresentando o posicionamento do coletivo nos eventos. — Foto: Danilo Esteban

Por isso o grupo se preocupa em contribuir com o crescimento da cena, já que o movimento alternativo ainda é pequeno. Stenio afirma que “Brasília é segregadora em todos os seus meios”, e a nata do movimento eletrônico também, seja pelo preço, local, acessibilidade, etc. Esse é um dos motivos dos eventos do coletivo serem gratuitos, justamente para qualquer pessoa de qualquer classe poder participar.

O Só na Maldade também compartilha trabalhos em formato de podcast no SoundCloud. Todo mês eles compartilham um set de um dos integrantes do coletivo. O último lançado foi com a Mari Perrelli, artista brasiliense já consolidada no quadrado e que agora reside em São Paulo.

Instagram e Facebook do coletivo.

Limbo

Para finalizar a nossa conversa vamos apresentar a Limbo. Nascido em novembro de 2016, o grupo conta com três integrantes ativos, Renato Rocha, Fernanda Cortes e Luan Autuori, ambos DJs e responsáveis pela curadoria musical, de performance e cenográfica, respectivamente. Além disso, o grupo conta com a ajuda de alguns amigos que integram a equipe em eventos, participando como performer, maquiadora, cenografista, montagem e logística, projeção e conteúdo visual, etc.

Para Renato muita coisa mudou desde 2016, “De repente talvez, houve uma despolarização em cima dos eventos que tinham em festas da música eletrônica, porque começaram a surgir vários coletivos afim de fazer suas festas, explorar suas vertentes e sua curadoria diferente“, defende.

Nas festas da Limbo, pode-se ouvir muito Techno, Disco, House, mas além disso, os estilos tocados estão sempre entremeados com a música popular do mundo, em particular com a música tropical brasileira e a música latino-americana.

“Existe uma diversidade muito grande na América do Sul musicalmente falando. Existe essa música indígena, que estava aqui espalhada pela antes, além desses processos coloniais, como a música advinda da Europa, a música africana e também do oriente. A gente enxerga a América Latina como um lugar de sincretismo cultural, onde todas essas artes se relacionam e se misturam. “, explica Renato.

Assim como os demais coletivos, a Limbo também luta contra as formas de preconceito e discriminação. O grupo diz que a maior causa é a criação desse espaço de comunhão entre pessoas, onde elas possam dançar, conversar, se vestir e se expressar como quiserem, respeitando as demais diferenças. “A gente sempre tem uma força muito grande de alegria e paz dentro dos nossos eventos. Então dentro do nosso espaço não existe preconceito, e se existir, ele deve ser suprimido e transformado em outra coisa imediatamente, porque a gente não aceita nenhuma forma de agressão nas nossas festas. Nós somos contra dogmas, qualquer tipo de fobia, e somos super a favor de enaltecer essas minorias que não são privilegiadas.”

Criatividade: a Limbo fez essas caixinhas de fósforo personalizadas para promover uma festa deles, expostas na Crying Club #7.

A Limbo também não visa lucro, e é por isso que as festas costumam ser gratuitas, e quando não são, custam um preço acessível. “Não estou criticando essas festas que custam mais caro, não é isso. Até porque tem festas que eles têm mais de 20 caixas de som empilhadas, apresentam artistas internacionais, dois ou mais ambientes, enfim. A gente também traz artistas de fora, mas em outra realidade. É sempre na base da troca de favores, explicando que a nossa festa acontece com a ajuda de parceiros, pois não temos condição de pagar (pela estrutura), porque a nossa festa presa por isso: ter um preço razoável e abranger essas pessoas. ”

O grupo também concorda que Brasília tem grande potencial para ser um polo dessa cultura alternativa, como disseminador tanto do trabalho interno como do externo, além de produzir novos conteúdos.

Instagram e Facebook do coletivo.

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