DIÁLOGOS

Os cenários de Palagô

Novo trabalho de Pedro Guinu bebe das fontes da cultura popular brasileira

Os cenários cotidianos acabam por inspirar uma infinidade de trabalhos artísticos. Pensar nas vivências como um lugar potente e produtor de questionamentos, torna o desenrolar de um trabalho mais palpável e orgânico. Pedro Guinu apresenta aspectos pessoais e da cultura popular brasileira (como as lavadeiras) em seu novo disco, Palagô.

O nome de seu novo trabalho traz o ressoar de vários lugares do Brasil por onde o cantor passou ao longo da vida. A palavra “Palagô” poderia estar num dicionário Iorubá ou no “Emoriô” de João Donato, mas é o recorte de uma rua alagada na Lapa, no Rio de Janeiro – onde Pedro reside atualmente. Natural de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, “Palagô” é uma forma de dizer “Lapa alagou”, comendo sílabas, dando espaço para o sotaque mineiro.

Conversei com Guinu para saber mais sobre seus percursos e chegar mais perto da construção coletiva de seu novo trabalho, e esse papo você pode conferir a seguir.

Qual é a virada do Guinu (2017) para o Palagô (2019)? Como você enxergar seu percurso enquanto compositor nesses dois anos que separam um disco do outro?

Palagô é um retrato de um Brasil afrodescendente, culturalmente riquíssimo, mas que carrega muita desigualdade social. Representa muito dos meus 7 anos morando na zona norte do Rio, a cidade mais bonita e caótica do mundo. As amizades, a espiritualidade, as desigualdades, o morro e o asfalto. O Rio é intenso e deixei me levar por ele. As composições nasceram naturalmente e novos parceiros musicais apareceram. Eu me encontrei como artista e Palagô nasceu do meu encontro com esse Brasil tão diverso.

O que marcou a minha carreira como compositor foi minha mudança de Minas para o Rio passando pelo Mississippi. Guinu é um disco que traz composições de 2011, minhas influências de música mineira, afronorteamericana, jazz, pop, Rock Progressivo. Essas coisas são a base da minha musicalidade e diz muito sobre mim como músico e artista.

Em Palagô você parece ter ido navegar em outras águas. Experimentado mais no campo eletrônico, empregado beats, explorado mais estilos, por assim dizer. Isso se deu como um desejo de testar mais?

Eu sou tecladista há quase 20 anos. O teclado é esse instrumento cheio de botões, timbres e texturas. Sempre curti muito os recursos no instrumento. Além disso, o dia a dia como produtor musical e arranjador me fizeram ter ainda mais contato com esse mundo do eletrônico. Projetos que participo como o Cajubeats e a Fémur me abriram a cabeça para o Ableton Live que uso em shows ao vivo e gravações. Essas experiencias me deram base técnica e artística para levar essa linguagem eletrônica também para o Palagô.

Como as participações do disco ampliam os horizontes das composições?

Eu vejo muita beleza na diversidade. A música é arte viva e pulsante, tem DNA e coração. Elementos novos e bem colocados podem criar coisas lindas e únicas.
Nos sarais, jam sessions, estúdios e botecos da vida eu conheci vários artistas. Com alguns deles, rolava uma química tão intensa que não sei explicar. Foram nesses rolês que fiz amigos pra vida inteira e grandes parceiros como o Caio Nunez, Ellen Correa, Marcelle Motta, Lienne Lyra, Matéria Prima, Jr Bocca a Floor Polder. Essas pessoas criaram elementos ou me deram composições inteiras como o Caio e o Bocca. Tive a sorte e a honra de ter estes amigxs talentosíssimos que registraram e enriqueceram o Palagô.

Palagô bebe muito da cultura popular – o próprio nome, os sotaques de alguns estados brasileiros que ficam evidenciados nas faixas, o canto das lavadeiras. Essas dinâmicas e diálogos dizem das suas raízes? Como isso entrou no disco?

Eu posso dizer que venho de um lugar e de uma época que a nossa cultura popular era muito forte. Sou mineiro de Teófilo Otoni, região do Vale do Mucuri – MG. Se você olhar no mapa a cidade está longe de todos os grandes centros, então criamos ali a nossa “metrópole”. A proximidade da Bahia nós deu o sotaque, a alegria e a cultura de festa. A música popular nordestina sempre presente no boteco do meu pai regado a cachaça e torresmo. Experimentei a religiosidade católica mineira e a curiosidade pelos terreiros de candomblé escondidos nas periferias. O coral regional, As Pastorinhas, constituído por senhoras, na sua maioria negras, entoavam cantos sacros enquanto seus netos disputavam nas rodas de capoeira.

Esse caldeirão de cultura popular também atravessava a cidade através da BR116, rodovia que corta o Brasil de norte a sul. Hoje, com a internet, a cidade é mais globalizada e conectada no mundo. A última vez que estive lá assisti a uma batalha de rap na praça e fiquei besta de orgulho.

“Haja fé” me fez lembrar de “Andar com Fé” do Gilberto Gil. Não só pelo nome, mas pelo tom, pelas imagens que as canções evocam, as duas composições dizem de um desejo de esperança, trazem personagens que ilustram esse desejo – a mãe senhora milagreira que nunca deixou de estender a mão, por exemplo, ou a fé que tá na mulher, na cobra coral. A música popular brasileira, nessa esfera que pensa a canção como expressão, é uma referência para você?

Enorme. Essa canção foi um presente maravilhoso do meu amigo querido Caio Nunez ele é um compositor muito sensível e tem uma grande influência de Gilberto Gil. “Haja Fé” traduziu um sentimento que sempre observamos no Rio. Mesmo com toda a dificuldade sofrida pelo povo sempre existirá lugar no coração para a esperança e a crença. O eterno Deus mudança.

Eu tive influência de cancioneiros populares a vida inteira, de Luiz Gonzaga a Milton Nascimento passando por Caetano. Aprendi harmonia ouvindo e estudando os songbooks do Djavan que além de cancioneiro é um grande arranjador. No arranjo de “Haja Fé” levei para o lado do sambajazz da década de 70 usando o fender rhodes como Marcos Valle e João Donato.

O disco apresenta paisagens muito contemporâneas. Em “Céu de Sangue”, por exemplo, você e Lienne Lyra colocam em panorama muitas das dores que temos vivido. A música ainda é um espaço de dizer e mostrar a nossa história enquanto povo. Você encara o Palagô como um recorte (seu) sobre o Brasil que vivemos?

Palagô é um disco de música afrobrasileira gravado e lançado no primeiro ano de um governo de extrema direita. Eu poderia falar sobre a perseguição da arte e da cultura, mas isso se torna pequeno quando o nosso povo está sendo assassinado nas periferias brasileiras. O bagulho é doido pra quem é preto no Brasil e ainda mais pra quem mora em comunidade.

Céu de Sangue é uma premonição vista em um tempo ancestral africano e mostra o pesadelo que o povo vive no Brasil de hoje. A Lienne Lyra com muita sensibilidade escreveu essa letra que é uma das minhas favoritas do álbum.

Creio que Palagô é um disco cheio de realidades contrastantes. Tragédia e fé, tristeza e esperança, vida e morte. Tem canções de amor e alegrias efêmeras também, pois é preciso fugir da realidade para manter a sanidade mental nesse período turbulento de incertezas e opressão.

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Letícia Miranda

Artista visual e poeta, Letícia se interessa pelas interseções entre poesia e som, poesia e imagem. Por meio de recortes busca ligar o que parece distante. Está há mais de dois anos escrevendo sobre, e a partir, da música. Além de colunista da Escuta atua como redatora no Música Pavê.

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