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Elza Soares – De dentro de cada um a mulher vai sair

De dentro de cada um a mulher vai sair

Em 1984 Audre Lorde, escritora feminista e ativista pelos direitos civis da população negra e LGBT dos Estados Unidos, problematizou a necessidade de transformar o silêncio em linguagem e em ação. Como dizia àquela altura, é importante falarmos senão “o peso do silêncio vai nos afogar”.

Como que num diálogo direto com a autora estadunidense, Elza entoa os primeiros versos de Dentro de Cada Um (Pedro Loureiro/Luciano Mello), canção do disco “Deus é mulher” (2018) lançada como clipe essa semana. Consciente do risco de se afogar dizendo que “A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio/ A mulher de dentro de mim cansou de pretexto/ A mulher de dentro de casa fugiu do seu texto”.

Fugindo do papel que lhe é atribuído e do lema “Corpo de mulher perigo de morte”, a mulher dentro de cada um é a expressão de um estágio social de ampliação do feminismo e do acirramento das disputas de narrativas que toma a sociedade brasileira em distintas pautas sociais, entre elas, os direitos das mulheres serem, estarem e decidirem sua vida conforme melhor lhes pareça.

Elza Soares – Dentro de Cada Um (Pedro Loureiro / Luciano Mello)

Ocupando o espaço do político e dos desdobramentos sociais de seus questionamentos e atuação na vida pública, ressignificando os conceitos basilares da dominação masculina e da sociedade da heteronorma compulsória, a mulher lésbica, a mulher trans, a mulher negra, a mulher quilombola, marisqueira, indígena, cigana, com deficiência, assentada e em todas as demais matrizes de possibilidades de existência “Vai sair/De dentro de cada um/A mulher vai sair/E vai sair/De dentro de quem for/A mulher é você”.

Ana Alice Alcântara Costa, socióloga baiana, foi uma das pensadoras que nos contou que o feminismo ressurgiu e se fortaleceu “em torno da afirmação de que o ‘pessoal é político’, pensado não apenas como uma bandeira de luta mobilizadora, mas como um questionamento profundo dos parâmetros conceituais do político”.

Assim, ao exacerbar a dimensão política do pessoal, os compositores da música colhida em safra boa para o álbum “Deus é mulher”, todo ele dedicado ao universo feminino pela voz icônica de Elza indicam a proporção das violências sofridas por tantas mulheres, sobretudo, aquelas mais vulnerabilizadas socialmente como as mulheres negras.

“De dentro da cara a tapa de quem já levou porrada na vida
De dentro da mala do cara que te esquartejou te encheu de ferida
Daquela menina acuada que tanto sofreu e morreu sem guarida”.

E assim como a menina acuada, a mulher vai sair de dentro do menino magoado “que não alcançou a porta da saída”. E sai dizendo ao mundo inteiro que “não quer mais incesto”, que “já cansou desse tempo”, que de dentro da jaula a mulher prendeu seu carrasco, tomou as rédeas e disse não.

Ainda assim, a mulher continua a sair de dentro de muitos corpos violentados, maltratados em carros, nos corpos vendidos “pra ter outra chance”, classificadas como “loucas vendendo saúde a troco de nada” e dos mocinhos matados e jogados num canto por serem diferentes.

A música traz forte crítica social e reforça as denúncias das violências contra pessoas LGBT e mulheres, o que amplia a sua importância em momento de retorno conservador ao discurso moral, ascensão do Poder Teológico-Político e das narrativas fascistas, como bem nos apontam Rita Segato e Marilena Chauí.

Com essa nova canção, Elza continua o discurso contra a violência direcionada às mulheres já feito em Maria da Vila Matilde (Douglas Germano), do anterior e impecável disco “A mulher do fim do mundo” (2015).

Elza Soares – Maria da Vila Matilde (Douglas Germano)

Sobressai a violência entre as mensagens de “Dentro de Cada Um” porque como nos mostrou Rita Segato, as relações de gênero mediadas pelo patriarcado são o centro da violência social e não apenas mais um de seus aspectos sociais.

Uma violência moralizadora que se confunde com o exercício do poder do homem dominante (heterossexual, branco, proprietário, cristão, cisgênero etc) reproduzido pelas masculinidades tóxicas que extirpam a vida de milhares de vítimas todos os dias ao redor do mundo.

Todavia, diante de toda essa violência, há, ao fim, mensagem de força evocada no andamento rápido e dinâmico da música cuja repetição informa que sim, “a mulher vai sair de dentro de cada um, que de dentro de quem for a mulher é você, sou eu, a mulher sou eu”, encerra Elza como se nos dissesse olhando nos nossos olhos, de corpo presente.

E que força da natureza podemos reconhecer que sai de mim, de você que me lê, de quem ouve ou não Elza Soares, mas que tem em si essa gana de viver e de lutar pelo fim das violências, dos abusos e da ignorância, como essa cantora porta-voz das liberdades. Aquela centelha que ilumina nossos sentidos de justiça e libertação, que nos instiga e movimenta em direção a um mundo melhor, tudo está em Elza.

Voltando ao início dessa prosa, lembro que Audre Lorde perguntava, em conferência de 13 de outubro de 1979, “quando a ignorância irá acabar?”.

Quase quarenta anos depois e continuamos sem resposta plausível para esse questionamento. Estamos, paradoxalmente, diante da ampliação dos espaços de ignorância, do fascismo social, da violência bruta reproduzida pelos ditos “cidadãos de bem”, com representação, inclusive, entre os candidatos à Presidência da República.

Entretanto, como a própria Lorde havia enfatizado naquela palestra, embora vivamos sob suspeita e com medo, podemos apostar nos processos de aprendizado com o outro, da quebra do silêncio e da necessidade de dar voz àquelas pessoas historicamente silenciadas, compreendendo a alteridade cuja existência pode nos fazer respeitar as promessas do futuro mais do que os terrores do passado.

E isso, como concluiu Lorde, só poderemos fazer com “um esforço pessoal extenuante e, as vezes, dolorosas escutas da mudança”. Por isso, penso que parte irremediável desse esforço é deixar a Elza Soares que habita em nós sair de dentro de cada um. “A mulher vai sair, de dentro de cada um, a mulher vai sair”.

Dá uma olhada:

Audre Lorde: https://pt.scribd.com/document/203768325/Textos-escolhidos-de-Audre-Lorde-pdf

Rita Segato: https://www.traficantes.net/sites/default/files/pdfs/map45_segato_web.pdf

Marilena Chauí: https://www.ces.uc.pt/bss/documentos/o_retorno_do_teologico.pdf

Ana Alice Alcântara Costa: http://www.feminismos.neim.ufba.br/index.php/revista/issue/view/7/showToc

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Fredson Carneiro

Baiano de Ibititá, sou apaixonado por música desde sempre. Sendo um diletante nas artes, sou mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolvo pesquisa sobre as transformações promovidas no direito e na política pelas lutas das pessoas transvestigeneres. Sobre a vida e a música, concordo com Milton Nascimento: "Há canções e há momentos/Em que a voz vem da raiz/Eu não sei se é quando triste/Ou se quando sou feliz/Eu só sei que há momento/Que se casa com canção/De fazer tal casamento/Vive a minha profissão".

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