BRASILEIRADIÁSPORA

“Mas se eu já fui trovão que nada desfez”

Ancestralidade e resistência negra na música brasileira contemporânea

Um pensador camaronês chamado Achille Mbembe nos lembrou há algum tempo que a permanência do racismo foi responsável pelo apagamento ou, no mínimo, pelo severo ocultamento da contribuição dos afro-latino-americanos e negros escravizados para o desenvolvimento das sociedades da América do Sul.

Esse ocultamento é cotidianamente produzido e compõe um projeto de negação da vida das populações negras. Isso porque, nos adverte Sueli Carneiro, a permanência do contrato racial elimina essa parcela da população enquanto produtora de conhecimento e sujeito de sua própria história.

Entretanto, alguns movimentos culturais estão acumulando as condições necessárias para revolucionar e enegrecer as artes, a filosofia e as ciências, questionando os limites da vida precária da população negra, do apagamento de seu passado e da negação de futuros possíveis em todas as esferas da vida social. Nas artes e, em especial na música, esse fenômeno tem ganhado contornos promissores.

Nomes como Luedji Luna, Xênia França, Larissa Luz, Rincon Sapiência, entre inúmeros outros, chegaram pra ficar e já tem uma marca própria bem definida. Trabalhando com sons diversos e alinhando-se a tendências regionais, nacionais e globais da música, esses artistas tem costurado as tramas de nossa existência afrodiaspórica, ocultada nos últimos séculos, e pautado os temas que marcam a nossa experiência contemporânea.

Luedji Luna – Iodo/Now frágil

Além das inúmeras violências descritas em Cabô (Luedji Luna) e Iodo + Now Frágil (Tatiana Nascimento) há também os sinais das resistências afrodiaspóricas e da ancestralidade negra expressas em Um corpo no mundo (Luedji Luna) e Saudação Malungo (Orlando Santa Rita e Cal Ribeiro), todas elas músicas do disco de estreia da soteropolitana Luedji Luna, que sai agora em turnê nacional de lançamento oficial do disco (não deixe de ir ao show mais próximo, é transcendental). Quem já a viu cantar sabe como essa árvore bonita cresce a cada dia tanto para o fundo, com suas raízes tão baianas com conexões globais, quanto para o alto, com os ramos que se espalham fazendo sombra boa em cada palco que pisa.

Em comum com a conterrânea, Xênia França, baiana de Candeias, voz-mulher do grupo Aláfia, big band paulista temperada nos sabores do afrofuturismo, traz em seu primeiro disco solo o som das vozes que hoje exigem seu espaço (Respeitem meus cabelos, brancos – Chico César). Assim também, das vozes doídas pelas violências e solidão que atingem as mulheres negras e a força coletiva que encontram na dororidade que as une, como nos ensina Vilma Piedade, e que Xênia canta dramática e altivamente em Breu (Lucas Cirillo).

Por sinal, altivez parece ser o apelido dessa cantora interessada no ensinamento de Nina Simone, que falava da responsabilidade do artista em refletir o seu tempo. Xênia abre o disco em tom empoderado e dispara “porque tu me chamas se não me conheces?” (Pra que me chamas? – Lucas Cirillo e Xênia França).

Xênia França – Pra que me chamas?

Com essa música, a cantora traz à tona “o corte fundo” do racismo na sociedade brasileira e debate a apropriação cultural, essa ação famigerada e ainda mal compreendida, que desfigura e desenraiza os elementos simbólicos mais caros às populações tradicionais, comunidades de terreiro e suas descendências.

E falar em empoderamento na música brasileira de hoje é necessariamente abrir espaço para que brilhe Larissa Luz. Também baiana, de Salvador, Larissa Luz já entrou na música descolonizada, trocando “estética opressora por identificação transformadora” (Bonecas pretas – Larissa Luz e Pedro Itan), cheia de suingue e em boa companhia.

Ao lado de ninguém menos do que Elza Soares (a quem interpreta divinamente no musical “Elza”, em cartaz no teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro, corre pra ver!), a cantora soteropolitana assinala no seu segundo disco a afirmação da plena consciência de ser mulher num mundo patriarcal, racista e machista. Sem jamais ceder, dispara: “conteúdo é munição/Miro e sigo […] É território conquistado/É espaço garantido” (Território conquistado – Larissa Luz e Pedro Itan).

Larissa Luz – Território conquistado

É no terreno desse território conquistado que performa Rincon Sapiência. Também conhecido como Manicongo, o rapper paulista costura com maestria um discurso que une o olhar sobre a realidade atual dos trabalhadores e trabalhadoras do país (A volta pra casa – Rincon Sapiência) com a história de violações sofridas secularmente pelos negros no Brasil. Problematizando os significados da violência do colonizado, Rincon a redimensiona como resistência na incrível canção-manifesto Crime bárbaro (Rincon Sapiência/Tom Zé /Valdez) e pluraliza o imenso conjunto de referências políticas e culturais da população negra mundo afora.

Entoando novas palavras de ordem como “faço questão de botar no meu texto, que pretas e pretos estão se amando” (Ponta de lança (verso livre) – Rincon Sapiência), o Manicongo tem se apropriado afirmativamente de expressões que outrora tinham tom desumanizante revertendo seus sentidos como “Se eu te falar que a coisa tá preta/A coisa tá boa, pode acreditar” (A coisa tá preta – Rincon Sapiência).

Rincon Sapiência – A coisa tá preta

Com Luedji, Xênia, Larissa e Rincon proponho um breve passeio por alguns dos temas da nova cena da música preta brasileira. Esse é o início de uma caminhada que faremos aqui no Escuta toda sexta-feira. Neste espaço conversaremos sobre esse cenário da música brasileira e todas as suas potencialidades.

Isso porque as denúncias e esperanças veiculadas pelos artistas aqui citados e todos os demais sobre os quais dialogaremos, são matéria imprescindível para compreender a invisibilidade em torno do racismo, que é parte do processo social que vivemos cuja transformação prescinde de enfrentamento crítico e desestabilizador.

Desse modo, chegamos a um ponto nos debates raciais sem retorno possível, ocupamos hoje um patamar mínimo de representatividade nas universidades, na vida pública, na política, nas instituições e nas artes. A tarefa é ampliar, nos fazermos conhecidos, ocupar e transformar mais espaços materiais e imateriais.

E há uma força motriz, ancestral, que nos leva adiante, talvez aquela que Tatiana Nascimento intuiu quando poetizou: “mas, se eu já fui trovão que nada desfez, eu sei ser trovão que nada desfaz”.

Saca essa turma:
*Achille Mbembe é um intelectual fundamental para a compreensão do mundo presente. O autor tem discutido os novos contornos do poder exercidos por um tipo de necropolítica num mundo regido por sociedades da inimizade. Entre seus livros, os impactantes Crítica da razão negra e Necropolítica.

*Sueli Carneiro, filósofa referida no texto, tem amplo debate sobre o epistemícidio promovido contra a população negra no Brasil e denunciou brilhantemente o contrato racial tácito que vigora no país. Publicou, entre outros, Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil.

*Vilma Piedade, como ela se define, “uma mulher preta, brasileira e feminista” é integrante da organização feminista PartidA Rio e da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). Publicou Dororidade, livro em que propõe um novo conceito para o debate feminista brasileiro sob o enfoque das vivências e experiências das mulheres negras.

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Fredson Carneiro

Baiano de Ibititá, sou apaixonado por música desde sempre. Sendo um diletante nas artes, sou mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolvo pesquisa sobre as transformações promovidas no direito e na política pelas lutas das pessoas transvestigeneres. Sobre a vida e a música, concordo com Milton Nascimento: "Há canções e há momentos/Em que a voz vem da raiz/Eu não sei se é quando triste/Ou se quando sou feliz/Eu só sei que há momento/Que se casa com canção/De fazer tal casamento/Vive a minha profissão".

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