O negro som de Ilessi – Uma fogueira que queima “mundo afora”
Mundo afora é disco-manisfesto que mostra o quanto a canção brasileira continua viva, rica e original
A fogueira está queimando para São João na terra em que Ilessi entoa seu som ancestral. Mas, não é sobre um passado literal que a multitalentosa cantora carioca canta em seu segundo disco de carreira, “Mundo afora: meada”, lançado recentemente pelo selo Rocinante.
A ancestralidade está incorporada ao seu canto, no tom único de suas cordas vocais e no encontro quase místico entre a voz e a sonoridade complexa, moderna e polifônica que alinhava cada uma das músicas do álbum magistralmente arranjado por Thiago Amud.
De nome inspirado na monumental obra “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, “Mundo Afora: Meada” é álbum tão brasileiro quão global em sua proposta rítmica plural.
Como afirmou Ilessi no encarte de “Mundo afora: meada”, a diversidade presente no repertório, que conta com novos compositores de vários estados brasileiros (Ceará, Brasília, Rio de Janeiro e Minas Gerais), também se mostra na instrumentação.
Essa sonoridade complexa, em camadas, com arranjos cheios é produzida pelo diálogo entre elementos rítmicos tipicamente nacionais (provenientes do forró e do coco, por exemplo), instrumentos mais tradicionais na música popular como as guitarras e sopros e a presença de instrumentos pouco usuais na música brasileira, como os indianos kanjira, pakawaj e morchang (berimbau de boca), o métalo (espécie de metal tocado com baqueta) ou os latinoamericanos alegre, chamador e tambora.
Conceituado como “um disco-manisfesto que mostra o quanto a canção brasileira continua viva, rica e original”, “Mundo afora: meada” é a confirmação de que embora sem grande espaço de mídia a música de raízes e intenções populares no Brasil continua reverberando e ampliando suas conexões com os demais países latino-americanos e africanos.
Ilessi – Mundo Afora (Marcelo Noronha e Vidal Assis).
Entretanto, não é só a ousadia instrumental que constitui o disco de Ilessi. As composições, cantadas em voz rascante e poderosa, são sínteses interessantes do momento em que vivemos.
Sobre essa voz, não sou o único a reconhecer que nos chegam ousadas e densas entonações que nos remete diretamente ao mergulho profundo que na música brasileira chamamos Elis Regina. Semelhança que só engrandece Ilessi como grande cantora que é.
Abrindo o disco com “Negro sangue” (Diogo Sili/Renato Frazão), a cantora carioca avisa o que virá no caminho, já que pauta raça e negritude, com menção a “Asa branca” (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), em mistura de guitarras que nos remete a uma sonoridade associada ao Nordeste mítico.
Em outro grande momento do disco, Ilessi é a voz realista que conta um pouco das alucinações de vidas “à margem de uma rodovia” em “Marginal de 381” (Paulo Rocha).
Ilessi – Marginal da 381 (Paulo Rocha).
Aliviando as tensões, o disco traça um interessante perfil d’A rede social (Thiago Amud), universo em que estamos imersos e que já aponta os sinais dos problemas subjetivos e coletivos que são criados ou hiper-dimensionados pela vida virtual dessa rede que não pensa, mas na qual tudo ganha propulsão.
Como dispara na crítica às redes sociais feita por Amud, Ilessi conta que à diferença do que se vive no mundo virtual “amizade é uma presença, não vem com numeração”, que a “miséria, guerra e doença não são feitas de jargão”.
Finaliza a música com humor crítico, algo sertanejo à Guimarães dizendo que “a mim não há quem convença que tanta conexão não torne a alma propensa a se queimar na multidão”.
Além dessas canções, há uma interpretação lapidar dada a músicas como “Mundo afora” (Marcelo Noronha e Vidal Assis), “Papoula brava” (Thiago Amud) e belos diálogos vocais com as participações de Leonora Weissman em “O amor me recomeça” (Milena Tiburcio e Caio Tiburcio), Paulo Rocha em “Miragem” (Gonzaga da Silva) e de Novelli e Nelson Ângelo em “Meada” (Thiago Amud e Marcelo Fedrá).
Meada a propósito é música riquíssima em melodia e letra que propõe reflexão sobre os sentidos da palavra povo, já que questiona “Onde a palavra ‘povo’ se lê/Leiam-se mais de mil intenções/Banto, ariano, maia, malê/Até que ponto há um povo que pensa, que inventa nações?/Nas multidões quem se vê?”
E segue: “Quem sabe o povo sabe o que quer?/Quem leva o povo leva um paiol/Que quer o povo sem ver sequer/Até que ponto Deus é nativo e Dom Pedro espanhol?/Quer futebol, quer mulher”.
E mais: “Pois a palavra povo é covil/Casa onde o falo põe e dispõe/Mas já tá murcha a voz varonil/Baixa na tropa, crise na Europa que se decompõe/E nos propõe um desafio/Maior/E que não foi sonhado jamais/Votar às Mães a terra, o suor/Pra que elas gerem o povo que saiba negar Barrabás/Que faça a Paz, mel do melhor”.
Propondo um universo sonoro próprio, Ilessi já anunciou que “Mundo Afora: Meada” é o primeiro título de um projeto maior que contará com outro disco, “Mundo afora: do caminhar”, trabalho a ser lançado com compositores de outras regiões do país.
Cumprindo bem o papel de mostrar o trabalho brilhante de compositores de sua geração, Ilessi registrou, no mini-documentário feito por Duda da Paz (Somtopia) sobre o processo de gravação do seu segundo CD, algumas de suas impressões, decisões e diálogos que produziram o disco como ele veio ao mundo.
Ilessi – Mini-documentário “Mundo Afora: Meada” – completo (Duda da Paz).
Envolvida em vários processos criativos, Ilessi tem trabalhado divulgando seu segundo disco, pensando a gravação do terceiro e participando de espetáculos incríveis como o “Tramundo”, musical inspirado na obra de Guimarães Rosa que conta com a adesão de excelentes músicos, como o pernambucano Zé Manoel, por exemplo.
Antes de concluir, repetimos reflexão iniciada no texto que saiu na semana passada sobre Virgínia Rodrigues (disponível aqui), questionando onde estava Ilessi nos últimos anos?
É difícil pensar que não há dimensões do racismo estrutural de nossa sociedade atravancando trajetórias como as de uma cantora com tanto apuro técnico, compromisso artístico e qualidade sonora como Ilessi.
Para quem não sabe, o primeiro disco de Ilessi “Brigador” (CPC-Umes) é primoroso.
Lançado em 2009, o CD conta com arranjos de Luís Barcelos para as composições de Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro, sendo uma delas, da dupla com Mauricio Carrilho.
A visibilidade de pretas e pretos nos interessa e, por isso, precisamos ocupar sempre e mais espaço.
Por fim, nada mais apropriado para fechar esse diálogo do que ouvir Ilessi.
Abaixo, trecho do show “Dama de Espadas”, realizado no evento “Transversais do Tempo”, no Espaço Caixa Cultural, em 2018, no qual Ilessi recita fragmento de “Eu não sou seu negro”, de James Baldwin e canta “Ilê de Luz” (Suka/Carlos Lima), um dos hinos do mais belo dos belos, afoxé que vem da Bahia, Ilê Aiyê. Dá o play, é imperdível!
Ilessi – “Eu não sou seu negro” (James Baldwin). Texto extraído do filme “Eu não sou seu negro”, de Raoul Peck/”Ilê de Luz” (Suka/Carlos Lima).
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