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Como o São Francisco na cheia, Josyara transborda poesia em Mansa Fúria

Ouça Mansa Fúria, segundo disco da cantora

“Quando você for ver o mar/ Seus olhos mergulhar na casa de Yemanjá/ Bahia de todos os santos vão abençoar/ E verá seu interior festejar/A lembrança de ser livre”. Apreciar o disco de estreia de Josyara é assim, como ver o mar da Bahia, uma lembrança de ser livre, “na selva, no barro, no mangue”.

Cantora baiana de Juazeiro, terra de música e sol, banhada pelo Rio São Francisco, fronteira com Pernambuco, onde a Bahia é mais Nordeste e mais barro do que mangue, Josyara acabou de lançar o belo disco “Mansa Fúria”.

O disco com assinatura própria, marcado por um olhar, uma sonoridade e um sotaque que vão do regional ao global em cada canção, parece refletir os processos vividos nas andanças de Josyara pela vida. A cantora, que vem trilhando seus caminhos pela música nos trânsitos entre Juazeiro, Salvador e São Paulo, traz sinais das cidades que a acolheram e lhe trouxeram marcas melódicas muito particulares.

De voz doce e composição inspirada, a cantora é quem assina a direção artística do disco com o Junix11 (do Baiana System) na direção musical. Além disso, assina todas as músicas do disco gravado em Salvador entre maio e junho desse ano. Compositora de mão cheia, Josyara ingressa no time cada vez mais relevante no cenário da música preta brasileira.

Versando sobre temas diversos como a solidão civilizada e a angústia cantadas em tom confessional, não se furta, entretanto, a refletir também sobre questões problemáticas de nossa realidade social. Com isso, Josyara constrói uma música de resistência em uma sociedade com imensas desigualdades entre homens e mulheres, com altos índices de violência contra a mulher e com presença feminina reduzida na política e em espaços de poder.

Nesse panorama de permanências patriarcais, machistas, lgbtfóbicos e racistas muitas mulheres de gerações anteriores à de Josyara sua tiveram grande dificuldade de se inserirem no mercado enquanto compositoras, como Dona Ivone Lara ou Dona Onete, por exemplo.

Hoje, num contexto de maior protagonismo de compositoras, em especial das mulheres negras, o lugar da composição ganha novos sentidos. Em tempos de terra tão árida para o pensamento crítico e das queimadas simbólicas e reais de pessoas, grupos e da própria história nacional, Josyara tem consciência que assim “como crescem as raízes do juazeiro na terra seca procurando o que beber”, as suas “ideias crescem no árido e hostil terreno das pessoas normais”.

Josyara – Terra seca

Já na música Nanã (Josyara e Luê), em tom existencial, a cantora apresenta questionamentos sobre a vida e ao mesmo tempo uma convicção de buscar o caminho e o destino a partir da palma da própria mão. Josyara desenha, assim, em fina poesia frases lapidares como “quando a tristeza canta, desobedeça a dor”.

Josyara – Nanã

Desse modo, a cantora constrói uma poética mansa mesmo num terreno em cuja vida social ganha cada vez mais espaço sementes do fascismo e dos discursos de ódio. É atenta a isso, que a cantora situa sua fúria contra esses tempos de “[…] ribeira imunda/ Da moral/ Dos bons costumes”, por um lado e das vozes que não voltarão para as senzalas, nem porões, armários ou prisões por outro.

Nada mais oportuno para oxigenar mentes e afagar corações do que a chegada desse disco entre nós. Josyara acertou em cheio ao traduzir esse tempo em linguagem prenhe de poesia, tal qual o São Francisco inundando tudo ao redor com a promessa de vida das águas da chuva.

Ouça Mansa Fúria (2018) na íntegra no Spotify.

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Fredson Carneiro

Baiano de Ibititá, sou apaixonado por música desde sempre. Sendo um diletante nas artes, sou mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolvo pesquisa sobre as transformações promovidas no direito e na política pelas lutas das pessoas transvestigeneres. Sobre a vida e a música, concordo com Milton Nascimento: "Há canções e há momentos/Em que a voz vem da raiz/Eu não sei se é quando triste/Ou se quando sou feliz/Eu só sei que há momento/Que se casa com canção/De fazer tal casamento/Vive a minha profissão".

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