Nara Couto: quando o brilho do mar da Bahia pediu a minha mão
Bahia preta representada pelo EP Contipurânia
Salvador, a cidade da Bahia, é mundialmente conhecida como “Roma negra” e não é em vão. Com referência direta ao tamanho do império de outrora, a Roma negra é assim chamada por ser a maior cidade negra do mundo fora do continente africano, um monumento às opressões históricas sofridas pelo povo preto que aqui chegou, monumento ainda maior da resistência e da força desses povos de diversas nações do rico tecido social, cultural e étnico da África continental.
Como fonte inesgotável de sons, sabores, histórias e inspirações, Salvador é o pano de fundo da “Bahia preta” cantada por Nara Couto no irretocável EP “Contipurânia”.
Atenta ao que Lélia González conceituou como “pretuguês”, Nara indica com o título de seu EP uma das características que marcam a história da população de origem africana no Brasil que é a variação linguística que transformou a língua portuguesa com as marcas da oralidade, de expressões típicas e das mais sofisticadas e distintas palavras de África e da diáspora.
Assim, saúda a alegria trazida por essa gente sofrida e unida; a esperança que traz esse povo cansado e pisado; a dança que dá força viva para alentar e a mensagem que traz no próprio ser (Filho de rei, Mateus Aleluia). Essa existência cuja síntese da exuberância cultural depõe a favor do Brasil preto e contra os racismos e violências sociais sofridos, apesar disso.
Quebrando o cativeiro com canto milenar ao toque de uma sonoridade pop, porque não afrofuturista, Nara entoa com propriedade que sua dança é de negro, “quero ver meu pé sangrar” (Filho de rei, Mateus Aleluia).
Isso porque antes de soltar a voz nesse canto de libertação, essa filha de rei já era uma referência na dança, tendo se especializado em dança afro contemporânea e atuado no Balé Folclórico da Bahia.
Nara Couto – Linda e Preta (Jarbas Bittencourt)
Direção: Lázaro Ramos
Tendo passagem também pela Orquestra Afrosinfônica, Nara tem amplo leque de experiências artísticas que de algum modo estão sintetizados em seu trabalho audiovisual. A dança e o movimento, a voz suave e os arranjos diretamente remetidos à música afrobrasileira aparecem em cada música, em cada clipe dessa cantora do Curuzu, território do mais belo dos belos, Ilê Ayê.
Conceituando seu EP como um disco sobre o amor em suas diversas possibilidades, Nara baila linda e preta por músicas que vão da solene mensagem do imenso Mateus Aleluia (Filho de rei) até o toque explosivo do amor romântico de compositores seus contemporâneos, como a música Fósforo, que teve seu clipe belo e corajoso divulgado no Dia Internacional da Mulher.
Nara Couto – Fósforo (Rafael Mike e Pedro Breder)
Direção: Elísio Lopes Jr.
Mostrando que ainda que haja tanta agonia ela pode cantar, como no samba de Batatinha entoado em tom de lamento e padecer (Diplomacia, Batatinha e J. Luna), Nara aceita as bençãos da saída de sua jangada ao alto mar da canção brasileira, com reverência à Yemanjá resplandecente no brilho do mar da Bahia.
É nesse mar da Bahia que aparece um pescador assustado com o pedido de Odoyá em horizonte aberto por brilho assustador. Chamado pelo mar a abrir o coração e entregar a sua mão, o pescador teria tudo que quisesse. Assim canta Nara (Brilho do mar, Maurício Faísca e Leandro Oliveira), abrindo os horizontes com sua doçura e ganhando o terreno que queremos que seja seu.
O disco de Nara é um convite, uma ode ao autoamor do povo preto, de nossa beleza, de nosso som, de nossa história, de nosso futuro. Como poetizou Mateus Aleluia, “cante e dance meu povo, que o mundo está pra mudar, a mudança é preciso, é tempo do rei reinar”.